quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Vagamundo de Galeano




VagaMUNDO, veja bem!Vaga-mundo, vagando pelo mundo.... É disso que trata o pequeno - e intenso - livro de Eduardo Galeano. Das suas andanças pela vida, das pessoas que encontrou, dos lugares que conheceu, das dores pelas quais passou.....O jornalista e escritor uruguaio já é consagrado em seu país, na Argentina, Bolívia e tantos outros países sul-americanos. Mas é sempre bom conhecer e redescobrir bons pedaços da sua obra. INCANSÁVEL percorrer e vagar com Galeano.

Segue texto doce e triste desse grande autor: Segredo no cair da Tarde, do livro VAGAMUNDO, de 1973.


SEGREDO NO CAIR DA TARDE


Ele chegou a galope, num alazão que eu não

conhecia. Depois o alazão ergueu-se em duas patas e

desapareceu e meu irmão também desapareceu. Fazia

tempo que eu o chamava e ele não vinha. Chamava

e não o encontrava. E ontem fui para o monte e ele

veio e me falou como antes, só que no ouvido.

Eu cuido, para ele, das coisas que ele deixou. Escondi

as coisas para que ninguém mexa nelas. A atiradeira,

a vara de pescar, o tambor, o revólver de madeira,

os preguinhos de fazer anzol. Tenho tudo isso

escondido e, quando ele vem, sempre me pergunta pelas

suas coisas. Eu tenho medo da gente que passa e prefiro

não sair. Volto da roça ou de carpir a horta e fico

aqui trancado, no escuro, cuidando das coisas para ele.

Quando acendem a lâmpada de querosene fecho os

olhos, mas deixo eles um pouquinho abertos e a lâmpada

vira uma linha brilhante e toda peluda de luz. E às

vezes converso com meu amigo que não sabe falar

porque é o cachorro. Converso, para não dormir. Sempre

que durmo, morro.



Já vão para cinco longos anos que em cima do

Mingo veio aquele caminhão na estrada. Estava cui

dando das duas vacas que nós tínhamos. Eu teria defendido

meu irmão, se estivesse lá com minha espada

amarela. E foi nesse dia que fiquei sem vontade de

brincar, e para nunca mais. Fiquei sem vontade de nada.

Porque eu e o Mingo sempre andávamos ao meio-dia

como lagartos, e íamos pescar e caçar passarinhos.

Mas, depois, não brinquei mais. Perdeu a graça.

Para mim, o que aconteceu com ele foi mau-olhado.

Alguém chegou e pôs um mau-olhado nele, justo

quando ele estava com a barriga vazia e depois veio o

caminhão e o esmagou. Nos gringos, nunca pega o

mau-olhado, me contaram. É que a gente daqui, de

Pueblo Escondido, a gente grande, tem a vista muito

forte demais. Aqui, toda a gente grande é má. Os grandes

batem. Me batem quando digo que posso conversar

com o Mingo sempre que quero, até hoje. Não deixam

nem eu falar o nome dele.

Por isso, nunca falo dele. Aqui em Pueblo Escondido,

eu não falo. Quando aconteceu aquilo, eu peguei

e meti na cara a máscara que o Mingo tinha feito para

mim no carnaval, que era um diabo com chifres de

trapo e a barba de verdade, e meti a máscara na cara

para que ninguém soubesse que era eu, e me atirei

com a bicicleta do Ivan turco a toda velocidade contra

a barranqueira, me atirei barranqueira abaixo, para me

arrebentar lá embaixo contra o lixo. Mas deu tudo errado

porque eu caí certo e não aconteceu nada. E aí me

bateram. E eu fiquei a noite inteira tremendo e de manhã

acordei todo mijado e me enfiaram num barril de água

gelada. Me deixaram na água gelada e eu não chorei

nem pedi que me tirassem. E, na primeira vez que meu

irmão apareceu, eu peguei e contei tudo para ele.

.......

Ontem subi num braço de árvore e fiquei fumando

e esperando. Eu estava certo que ele não ia falhar.

E o Mingo apareceu a galope, bem no meio da imensa

nuvem de pó, quando só restava um pouco de sol no

céu. Ele me pediu para chegar mais perto, me fez sinais

com o braço, e eu desci e embaixo de um espinheiro

ele me contou um segredo. O ar do morro tinha cheiro

de laranjas maduras. Não desceu do alazão. Abaixou

o corpo, e só. E me disse que eu vou ter dinheiro e vou

pegar e comprar um caminhão para mim e encher o

caminhão de palha e barba de milho para ter o que

fumar para sempre. E vou embora. E vou para o mar.



O Mingo me disse que passando o horizonte fica

o mar e que eu nasci para ir embora. Para ir, para isso

nasci. Pega o caminhão e vai embora, ele me disse. E

aqueles que não gostem disso, você passa por cima

com o caminhão. Quer dizer que eu vou embora. Para

o mar. E levo todas as coisas do meu irmão. Monto no

caminhão e antes do mar eu não paro. Do mar sim, eu

não tenho medo. O mar estava me esperando e eu não

sabia. Como será? Como será o mar? – perguntei ao

meu irmão. Como será muita água junta? E o mar respira?

E responde quando lhe perguntam? Tanta água

no mar! E não escapa, essa água do mar?

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