VagaMUNDO, veja bem!Vaga-mundo, vagando pelo mundo.... É disso que trata o pequeno - e intenso - livro de Eduardo Galeano. Das suas andanças pela vida, das pessoas que encontrou, dos lugares que conheceu, das dores pelas quais passou.....O jornalista e escritor uruguaio já é consagrado em seu país, na Argentina, Bolívia e tantos outros países sul-americanos. Mas é sempre bom conhecer e redescobrir bons pedaços da sua obra. INCANSÁVEL percorrer e vagar com Galeano.
Segue texto doce e triste desse grande autor: Segredo no cair da Tarde, do livro VAGAMUNDO, de 1973.
SEGREDO NO CAIR DA TARDE
Ele chegou a galope, num alazão que eu não
conhecia. Depois o alazão ergueu-se em duas patas e
desapareceu e meu irmão também desapareceu. Fazia
tempo que eu o chamava e ele não vinha. Chamava
e não o encontrava. E ontem fui para o monte e ele
veio e me falou como antes, só que no ouvido.
Eu cuido, para ele, das coisas que ele deixou. Escondi
as coisas para que ninguém mexa nelas. A atiradeira,
a vara de pescar, o tambor, o revólver de madeira,
os preguinhos de fazer anzol. Tenho tudo isso
escondido e, quando ele vem, sempre me pergunta pelas
suas coisas. Eu tenho medo da gente que passa e prefiro
não sair. Volto da roça ou de carpir a horta e fico
aqui trancado, no escuro, cuidando das coisas para ele.
Quando acendem a lâmpada de querosene fecho os
olhos, mas deixo eles um pouquinho abertos e a lâmpada
vira uma linha brilhante e toda peluda de luz. E às
vezes converso com meu amigo que não sabe falar
porque é o cachorro. Converso, para não dormir. Sempre
que durmo, morro.
Já vão para cinco longos anos que em cima do
Mingo veio aquele caminhão na estrada. Estava cui
dando das duas vacas que nós tínhamos. Eu teria defendido
meu irmão, se estivesse lá com minha espada
amarela. E foi nesse dia que fiquei sem vontade de
brincar, e para nunca mais. Fiquei sem vontade de nada.
Porque eu e o Mingo sempre andávamos ao meio-dia
como lagartos, e íamos pescar e caçar passarinhos.
Mas, depois, não brinquei mais. Perdeu a graça.
Para mim, o que aconteceu com ele foi mau-olhado.
Alguém chegou e pôs um mau-olhado nele, justo
quando ele estava com a barriga vazia e depois veio o
caminhão e o esmagou. Nos gringos, nunca pega o
mau-olhado, me contaram. É que a gente daqui, de
Pueblo Escondido, a gente grande, tem a vista muito
forte demais. Aqui, toda a gente grande é má. Os grandes
batem. Me batem quando digo que posso conversar
com o Mingo sempre que quero, até hoje. Não deixam
nem eu falar o nome dele.
Por isso, nunca falo dele. Aqui em Pueblo Escondido,
eu não falo. Quando aconteceu aquilo, eu peguei
e meti na cara a máscara que o Mingo tinha feito para
mim no carnaval, que era um diabo com chifres de
trapo e a barba de verdade, e meti a máscara na cara
para que ninguém soubesse que era eu, e me atirei
com a bicicleta do Ivan turco a toda velocidade contra
a barranqueira, me atirei barranqueira abaixo, para me
arrebentar lá embaixo contra o lixo. Mas deu tudo errado
porque eu caí certo e não aconteceu nada. E aí me
bateram. E eu fiquei a noite inteira tremendo e de manhã
acordei todo mijado e me enfiaram num barril de água
gelada. Me deixaram na água gelada e eu não chorei
nem pedi que me tirassem. E, na primeira vez que meu
irmão apareceu, eu peguei e contei tudo para ele.
.......
Ontem subi num braço de árvore e fiquei fumando
e esperando. Eu estava certo que ele não ia falhar.
E o Mingo apareceu a galope, bem no meio da imensa
nuvem de pó, quando só restava um pouco de sol no
céu. Ele me pediu para chegar mais perto, me fez sinais
com o braço, e eu desci e embaixo de um espinheiro
ele me contou um segredo. O ar do morro tinha cheiro
de laranjas maduras. Não desceu do alazão. Abaixou
o corpo, e só. E me disse que eu vou ter dinheiro e vou
pegar e comprar um caminhão para mim e encher o
caminhão de palha e barba de milho para ter o que
fumar para sempre. E vou embora. E vou para o mar.
O Mingo me disse que passando o horizonte fica
o mar e que eu nasci para ir embora. Para ir, para isso
nasci. Pega o caminhão e vai embora, ele me disse. E
aqueles que não gostem disso, você passa por cima
com o caminhão. Quer dizer que eu vou embora. Para
o mar. E levo todas as coisas do meu irmão. Monto no
caminhão e antes do mar eu não paro. Do mar sim, eu
não tenho medo. O mar estava me esperando e eu não
sabia. Como será? Como será o mar? – perguntei ao
meu irmão. Como será muita água junta? E o mar respira?
E responde quando lhe perguntam? Tanta água
no mar! E não escapa, essa água do mar?